22 de jul. de 2007

Conto de Maria




Maria vai à feira. Precisa comprar frutas, legumes e verduras. Os feirantes já a conhecem. Eles gritam pelo seu nome e dão-lhe de tudo para experimentar. Maria saboreia e,em suas mãos, as frutas se misturam com o dinheiro. Pensa: em casa terei que lavar tudo muito bem. Sua roupa e seus sapatos são simples e elegantes. Servem para caminhadas duras e longas. Daqui a pouco ela retornará ao lar, doce lar, pensa ela. Seus filhos e netos encherão a casa de risos, brincadeiras e sonecas Serão duas lazanhas porque a família é grande e italiana. Seu marido já está morto. Que falta ele faz! Um olhar silencioso, mas fraterno. Não era de falar muito, mas tocava com a alma e com as mãos. A criançada chorou quando o marido de Maria partiu para não mais voltar. Elas olhavam para o céu e diziam que seu avô havia se tornado uma estrela brilhante. Um dia, no aniversário do marido de Maria, as crianças correram e soltaram fogos e cantaram parabéns. Tudo foi muito emocionante porque para as crianças, tudo vive. A morte está no lugar certo. É natural, não é sofrida como para os adultos. Crianças fazem castelos de areia na beira da praia e entendem que o que constroem, o mar leva.Maria, uma mulher de fibra, há muito deixou de ser cristã, não por revolta, mas porque entendeu que amar a vida já bastaria. Sua alegria é contagiante, às vezes, ela dá gargalhadas e fala muito no falecido. Fala com alegria e uma ironia de mulher viúva que pode falar o que quer porque ninguém vai recriminá-la. Um dia ela contou que o marido ficou sem falar com ela quase uma semana porque tinham brigado feio. Maria sempre foi orgulhosa e ele também. Sempre se amaram e voltaram a se falar da mesma forma que haviam parado; naturalmente. Todos riram porque ninguém imaginava que o marido de Maria pudesse ser rabugento. Ela tinha muitas estórias para contar e sabia que em alguma, ela as interromperia. A hora dela chegaria também. E cabia aos filhos e netos continuarem.Chegou a hora da sobremesa.

Marisa Speranza

17 de jul. de 2007

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"Nada existe de mais frágil do que uma criatura iludida a seu próprio respeito."

A loucura de Cintia


Cintia começou a gritar de desespero. Havia morrido? Talvez estivesse no inferno por tantos pecados que cometera. Era apenas o pesadelo de sua própria vida. Quando acordou e se viu tão angustiada, correu para o telefone prá falar com a outra qualquer e escutar: "Não, querida! Você é maravilhosa. Você tem a sabedoria. Não fique assim,Cintia. Você é doce, generosa e nada lhe acontecerá." Como lhe fazia bem essas palavras porque sentia que era superior a tudo e a todos. Tinha necessidade de ser vista, ouvida e reconhecida. Viveria sem nada,mas sem espelho nunca.Como sofria de excesso de imagem! Sua pele alva, quase morta, dizia-lhe que não tinha vida própria; estava presa a seu ego, a sua canastrice de todos os dias. Bebia da hóstia das palavras proferidas por um oráculo abandonado. Quanta tristeza lhe pertencia. Era alvo de sua própria ironia e da necessidade desenfreada de poder. Sofria de mal estar e desde criança se imaginava como salvadora, uma heroína do universo Nem a loucura a agüentava mais; seu delírio não tinha fim. Há muito tempo perdeu a razão. Nem sabia se já estava morta. Delirava seu próprio enterro e imaginava, que ao ser velada, o mundo inteiro chorava sua morte.Quantas chorariam por mim? Quanta carência! Cintia sempre foi estrábica porque sofreu de excesso de reflexo. Não tinha foco e nunca aprendeu a enxergar o mundo como ele é.Não acompanha seus movimentos. Prá se sustentar, Cintia é presa aos rituais de iniciação e destruição.Às vezes, se vê como Prometeu, aquele que roubou o fogo para a humanidade. Mas, na verdade, Cintia, no mito, seria apenas o abutre.


Marisa Speranza

15 de jul. de 2007

O Universo

O universo não é uma idéia minha.
A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.


Alberto Caeiro

3 de jul. de 2007

Conto da Mariana

Mariana ouve ruídos na casa. Quer dormir,mas tudo lhe parece ensurdecedor.Debate-se, solitária, na cama, sabendo que daqui a pouco o sol irá raiar e terá que se sujeitar a mais um dia. Sua respiração está ofegante, seu medo é grande. Ele foi embora; já não lembrava se fazia um dia ou cem anos. A saudade a sufocava. Onde será que ele estaria? Numa cama de seda ou com latas de cerveja pelo chão? Pensava nela? Quanta dor havia naquela separação. Tantas coisas não ditas e outras, demais. Tudo neles era além da conta; a experiência de um e a inocência de outro. Às vezes, eles se revezavam nesse papel. Era esquisito, todos diziam. Você é feliz? Você faz de conta? Não tinham filhos; ficara ali a vida inteira com ele. Era uma quarta-feira. Ele não chegava e Mariana se desesperou. Ligou para as amigas, para a mãe e para os hospitais. Não ligou pro hotel sórdido onde ele se encontrava com a outra que lhe tirara tudo. Confiava. Seu coração dispara diante da incerteza: estaria morto? Prefiro que ele esteja me traindo. Diante da lembrança, levantou-se da cama, horrorizada. Iria sufocar pela segunda vez. O ar lhe faltava como naquela quarta às três horas da manhã. O marido de Mariana não chegou, de mansinho. Fez barulho para acordá-la. Não precisava. Ela lhe perguntou onde ele esteve e ele disse: longe dos cheiros e dos gostos que fazem eu me lembrar onde estou há tanto tempo. Vou embora. Mariana se desespera e chora e morre. Está morrendo agora. Chora e chora. Nunca mais fará outra coisa a não ser chorar e morrer lentamente.

Marisa Speranza

2 de jul. de 2007

Pessoas


Sempre espero que pessoas virem gente; não piegas e sedutoras. Pessoas que se comprometam com a vida, que não enrolem com suas distorções e sabotagens. A maioria pensa que o outro está a sua disposição, que verdades são as mentiras que inventam para si própria. Pessoas não estão bem, fazem alianças e querem subir na vida como foguetes. Precisariam antes ir fundo em sua essência que não é tão boa assim. Assusto-me com pessoas tão doces e ao mesmo tampo venenosas. " O mundo está acabando". Aqui e ali, perto e longe. Não temos mais lugar para as verdades que necessitam ser ditas e aprendidas com maturidade. Não se cresce na bajulação. O verdadeiro homem é aquele que permite ao outro, espelhar-se e, em sua coerência, quebrar a imagem que reflete sua ignorância mesclada de pose. Ética, palavra esquecida , abandonada. Não temos mais saída e , ao mesmo tempo,algumas pessoas ainda têm a boa capacidade de me supreender e, por isso, tento sempre melhorar para que eu possa encontrá-las.
Marisa Speranza

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"Na maioria das vezes, um pepino é somente um pepino"

Freud