18 de jun. de 2007

Canto Noturno - AFZ - Nietzsche


É noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes. E também a minha alma é uma fonte borbulhante. É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam. E também a minha alma é o canto de alguém que ama. Há qualquer coisa insaciada, insaciável, em mim; e quer erguer a voz. Um anseio de amor, há em mim, que fala a própria linguagem do amor. Eu sou luz; ah, fosse eu noite! Mas esta é a minha solidão: que estou circundado de luz. Ah, fosse eu escuro e noturno! Como desejaria sugar os seios da luz! E até vós desejaria abençoar, pequenos astros cintilantes e vagalumes, lá no alto! - e ser feliz com as vossas dádivas de luz. Mas eu vivo na minha própria luz, sorvo de volta em mim as chamas que de mim rompem. Não conheço a felicidade dos que recebem; e muitas vezes sonhei que roubar deve ser ventura ainda maior que receber. É esta a minha pobreza: que minha mão nunca pára de dar presentes; é esta a minha inveja: qie vejo olhos à espera e as noites iluminadas do anseio. Ó desventura de todos os dadivosos! Ó obscurecimento do meu sol! Ó desejo de desejar! Ó fome insaciável na saciedade! Eles recebem os meus presentes; mas tocarei ainda a sua alma? Há um abismo entre dar e receber; e também o menor dos abismos precisa ser transposto. Nasce uma fome da minha beleza: desejaria magoar aqueles que ilumino; desejaria roubar aqueles que presenteio: assim tenho fome de maldade. Retirar a mão, quando já a outra mão se lhe estende; hesitar como a cachoeira, que ainda hesita ao precipitar-se: assim tenho fome de maldade. Tal vingança medita minha plenitude, tal perfídia brota da minha solidão. Minha ventura em dar extinguiu-se ao dar, minha virtude cansou-se de si mesma pela sua superabundância! Quem sempre dá, corre o perigo de perder o pudor; quem sempre reparte, cria calos em suas mãos e coração, de tanto repartir. Meus olhos não choram mais ante o pudor dos pedintes; demasiado endureceu minha mão, par sentir o tremor das mãos satisfeitas. Para onde foram as lágrimas dos meus olhos e o frouxel do meu coração? Injusto, no fundo do seu coração, com tudo o que é luminoso; frio para com os outros sóis - assim segue, cada sol, o seu próprio caminho. Como uma tempestade, percorrem os sóis, velozmente, suas órbitas: esse é o seu curso. Seguem, inexoráveis, a sua vontade: é essa a sua frieza. Ó seres escuros, noturnos, somente vós criais o calor, haurindo-se dos corpos luminosos! Somente vós bebeis o leite e o bálsamo dos seios de luz! Ah, há gelo em volta de mim; queima-se minha mão tocando em gelo! Ah, há uma sede, em mim, que almeja pela vossa sede! É noite: ai de mim, que tenho de ser luz! E sede do que é noturno. E solidão! É noite: como uma nascente, rompe em mim, agora, o meu desejo - e pede-me que fale. É noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes. E também a minha alma é uma fonte borbulhante. É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam. E também a minha alma é o canto de alguém que ama. - Assim falava Zaratustra.

Nenhum comentário: